Kenjiro e Maverick haviam chegado ao local antes mesmo do primeiro feixe de luz do sol. Ambos contemplando em silêncio o barulho suave das ondas do mar. Maverick havia sido o capitão de Kenjiro quando o mesmo ingressou na marinha como apenas um mero soldado. Hoje, sob sua tutela, o rapaz havia se tornado Vice-almirante renomado, seu atual posto sendo duas patentes a cima de seu antigo tutor.

O idoso não se importava com o fato de ter encalhado sua carreira após três promoções, na verdade, até achava que a patente de capitão era um verdadeiro estorvo em sua vida. Ele era preguiçoso, não gostava de chamar muita atenção, odiava trabalhar até tarde da noite, e sair de sua sala, para andar no sol quente e resolver a bagunça dos outros, e não podemos esquecer que odiava os barcos, pois era acometido de um enjoo terrível toda vez que estava a bordo. “Um verdadeiro inferno”, gostava de destacar com frequência. Mas o salário era muito bom, lhe rendeu a aposentadoria que sempre sonhou. E quando Kenjiro se tornou seu tenente, ficou melhor ainda. Era um rapaz dedicado até demais, e o capitão não perdeu a chance de jogar todas as responsabilidades em suas costas, podendo finalmente passar o resto de seus dias na marinha, relaxando e fumando até o seu pulmão virar uma massa preta perniciosa.

Mas Kenjiro era um ótimo observador, e tinha lá seus truques, sabendo extrair do capitão Maverick o melhor dele. Por trás de toda aquela vagabundagem, existia um excelente lutador e estrategista, apesar da estratégia dele sempre ser: fazer o mínimo aceitável no menor tempo possível. Com o tempo Kenjiro foi conquistando o velhote, tornando-se bons amigos. Maverick treinava o rapaz para que ele precisasse dele o menos possível, pensava ser um tempo perdido agora que lhe renderia o resto de uma vida inteira de paz e tranquilidade. E Kenjiro fez disso uma oportunidade, aprendeu muito com Maverick, desde administração, até combate. Com o tempo, o rapaz só tinha coisas boas para reportar para seu capitão, e Maverick de pouco em pouco começou a palpitar menos nas decisões de seu Tenente. Até que Kenjiro adentrava a sua sala apenas para lhe cumprimentar, ou se despedir após um longo dia de trabalho.

Ao contrário do velhote, Kenjiro não passou despercebido. Um tempo depois se tornou capitão também, gerenciando seu próprio QG na mesma ilha. Meverick implorou para que ele não o deixasse, e o rapaz aceitou, com apenas uma condição: gerenciaria os dois quartéis sem a marinha saber, e em troca, o velhote teria uma dívida eterna com ele.

No entanto, Kenjiro não conseguiria refrear sua ascensão por muito tempo. Anos depois, seu talento havia sido reconhecido novamente, se tornando um dos Comodoros mais jovem da história da marinha. Talvez o seu sangue fosse mais Dain - linhagem distante da família - do que Miyazaki no fim das contas. O que não seria tão estranho, pois ambas as famílias, descendem do mesmo ancestral, e compartilham de um interesse um tanto peculiar em manter a linhagem pura.

Hoje, no auge de seus 37 anos, um olho a menos, várias missões de sucesso nas costas, e uma aparência jovem de dar inveja a qualquer um, Kenjiro tomou seu lugar como Vice-Almirante da Marinha, e assumiu possivelmente a missão mais difícil de sua vida. Fazer com que sua sobrinha, que até então, só sabia servir chás, pudesse trilhar uma carreira  nas forças armadas sem morrer precocemente. Pensando melhor, não poderia ter sugerido ideia pior para uma garota que acabara de amaldiçoar seus próprios dons e vinha sendo constantemente escanteada pela família. Uma vidente que só via desgraça, não seria bom para os negócios. Principalmente quando o mero vislumbre de sua presença, já deixava os clientes tremendo em seus assentos com a possibilidade de que suas previsões fossem afetadas com mau agouro.

Naquela manhã, Kimiko acordara com o rosto inchado, bolsas roxas enormes debaixo dos olhos, não havia dormido nada bem, com medo de cair no sono e ser novamente atormentada por pesadelos vívidos, sobre aquele fatídico dia. O dia que foi obrigada a quebrar a regra mais importante da sua família: não poderia praticar adivinhação durante a noite. Por isso que hoje odiava piratas. Por isso que trilharia seu novo futuro na marinha. E levaria qualquer malfeitor que atravessasse seu caminho, há justiça.

Mas nada era tão simples assim. Seu irmão, como primogênito, recebia treinamento de batalha desde que aprendeu a ficar em pé sozinho, sob o pretexto de proteger a família, e manter as tradições Miyazaki vivas por muitas gerações. Mas tudo que Kimiko sabia fazer, consistia em preparos de chás, leitura de folhas, manipulação de ervas venenosas - o limiar entre cura e veneno, dependia da posologia da mistura - e claro, esperar o dia de seu casamento com o seu irmão mais velho, porque infelizmente, a primeira mulher nascida nesta família, carregaria esse fardo, quer goste, quer não.

Como poderia se casar, logo com seu próprio irmão? Quando nem mesmo sabia se gostava de homens ou de mulheres, talvez os dois. O destino da garota se tornava cada vez mais cruel.

Tomou um café da manhã reforçado sozinha, pois acordara mais cedo do que todo mundo de sua família, justamente para evitar os olhares de piedade de sua mãe. E caminhou pela cidade até o local combinado. Os treinos começariam hoje, e seu tio havia dito que traria uma surpresa para ela.

Ao chegar na praia, se deparou com duas figuras, uma era conhecida, um homem alto de pele bronzeada, longos cabelos azuis que se prendiam em um rabo de cavalo baixo, um olho de um azul claro, e o outro - que perdeu em batalha - escondido atrás de um tapa olho, suas feições eram finas como uma adaga, mas Kimiko sempre achou ele parecido com uma raposa astuta. O outro era um senhor, franzino, o resto de cabelo que tinha era curto e espetado, envolvendo uma careca reluzente. Seu tio deu um toque no ombro do velho e ambos se viraram em sua direção. O velho não se contentou em só olhá-la com desprezo, mas disse em voz alta. “Isso é uma piada, não é?”dizia incrédulo. “Ela não tem músculo nem para empunhar uma espada Kenjiro!”, seu tio apenas fez um gesto para que ela se aproximasse e disse, “Meverick, essa é Kimiko, minha sobrinha. Kimiko, esse é Meverick, um grande amigo”.

Kimiko cumprimentou o velho e tentou esconder o olhar de desprezo que ele lhe devolvia. Ela sabia que não era exatamente o que se poderia chamar de "talentosa" em comparação aos outros, mas estava determinada a provar que poderia se tornar uma marinheira forte e capaz, mesmo que fosse apenas para provar a si mesma.
Maverick bufou e deu de costas para ambos a fim de voltar para seu quarto que ficava em algum lugar da cidade, mas Kenjiro o chamou. "Espere, Maverick. Eu acredito na Kimiko, e você também vai acreditar. Ela tem uma força de vontade que muitos soldados não têm. Vamos dar a ela uma chance de mostrar do que é capaz".
Maverick olhou para o tio de Kimiko com desconfiança, mas acabou cedendo. "Tudo bem, eu darei uma chance. Mas se ela não der conta do recado, eu não vou ficar aqui perdendo tempo”
Kimiko assentiu, determinada a provar o seu valor. Ela sabia que teria que trabalhar muito mais do que os outros, pois a maioria recebia treinamentos desde jovem, inclusive a outra vertente de sua família que treinava as crianças desde o berço para fazer carreira na marinha, mas estava disposta a fazer o que fosse preciso para mostrar o seu potencial. Ela seguiu Maverick e Kenjiro para começar o treinamento.

Kimiko se aproximou, tentando esconder sua insegurança. Ela nunca havia segurado uma espada na mão, e agora estava diante de um Vice-Almirante da Marinha e um ex-capitão, ambos experientes em combate. Ela se perguntou se a tarefa não estaria muito além do seu nível.
Maverick continuou a observá-la com desconfiança, mas Kenjiro parecia determinado a provar que ela poderia se tornar uma soldado valiosa. Os treinos começaram e Kimiko se esforçou ao máximo, tentando acompanhar os exercícios físicos e táticos que lhe eram ensinados. Ela percebeu que sua força física não era a melhor, mas tentou compensar com sua determinação e habilidades mentais. Maverick ainda parecia cético, mas Kimiko começou a ganhar o respeito dele conforme progredia em seus treinamentos.
Ela treinou duro todos os dias, acordando cedo e trabalhando até tarde. Ela se sentia cansada, mas ao mesmo tempo, realizada. Pela primeira vez, sentia que estava fazendo algo pelo qual era realmente capaz, e não apenas cumprindo as expectativas de sua família. Ela estava determinada a provar que poderia se tornar uma pessoa valiosa, e não apenas uma vidente amaldiçoada.
Ela acreditava no destino, mas se sentia remando contra ele. Apesar de não ter sido a sua primeira opção, ela sentia que finalmente estava tomando as rédeas de sua vida.

Kimiko não teve uma boa adaptação no início do treinamento. Ela estava acostumada a trabalhos mais leves, como preparar chás e manipular ervas. Por isso, a princípio, teve dificuldades em manusear as armas que lhe foram apresentadas. O chicote foi a primeira arma que conseguiu dominar, após muito treino e prática. Ela se sentia mais à vontade com ele, pois era uma arma versátil e podia ser usada de diversas maneiras.
A luta corpo-a-corpo também foi algo que Kimiko conseguiu se sair bem. Ela era ágil e possuía uma grande destreza física, o que a ajudou a aguentar as longas horas de treinamento. No entanto, ela ainda sentia falta da delicadeza e precisão que possuía quando trabalhava com ervas e chás. Mas ela sabia que precisava se esforçar e se adaptar ao seu novo ambiente, se quisesse realmente se tornar uma soldado da marinha.
Com o passar dos dias, Kimiko começou a se sentir mais à vontade no treinamento e conseguiu desenvolver novas habilidades. Ela ainda não era a melhor aluna, mas estava se esforçando ao máximo para se tornar uma soldado forte e capaz. Ela sabia que precisaria provar seu valor e superar os preconceitos de muitos que a subestimavam pelo fato de ser uma mulher e por não ter o mesmo treinamento que os outros soldados.

Aparentemente Kimiko compensava sua força física com determinação e treinamento duro. Além de provar seu valor para outras pessoas, a garota sabia que lá no fundo ela estava resgatando a sua fé em si mesma, e mostrando que poderia ser excelente em outras atividades.
Kimiko treinou com todas as suas forças, sabendo que não poderia decepcionar seu tio. Mesmo tendo dificuldades com as outras armas, ela se dedicou ao chicote e à luta corpo-a-corpo, pois sentia que eram suas principais habilidades. Maverick era duro com ela, mas Kimiko não desistiu, e acabou se tornando uma lutadora ainda mais forte do que muitos soldados comuns.
Ela aprendeu a controlar sua respiração, a concentrar-se nas tarefas em mãos e a não deixar sua mente divagar. Também aprendeu a controlar sua força, a medir seus golpes e a usar seu corpo como uma arma. E, acima de tudo, aprendeu a nunca desistir, mesmo quando as coisas pareciam impossíveis.
Com o tempo, Kimiko se tornou uma lutadora experiente, e seu tio ficou orgulhoso de tudo o que ela havia conseguido. Ela continuou a treinar duro, sabendo que ainda tinha muito o que aprender, e um dia, talvez, até mesmo se tornar um Comodoro, assim como seu tio.

Depois de um tempo, Kimiko começou a treinar para combate com o próprio velhote como “adversário”, que apesar de preguiçoso acabava com a menina rapidamente. As lutas entre Kimiko e Maverick eram intensas, Kimiko havia se dedicado incansavelmente nos últimos meses, treinando duro todos os dias, determinada a conseguir derrotar o velho, afinal, se a garota não conseguisse derrotar um velhote geriátrico, ela não conseguiria lutar contra piratas. Ela até sabia o básico de manejo com outras armas, mas sua preferida era o chicote, que ela manipulava com habilidade e precisão. Com essa arma em mãos, a menina brilhava. Além disso, ela também era boa em uma luta corpo-a-corpo, graças ao treinamento rigoroso, mas sabia que a maioria das pessoas poderia ultrapassá-la em força, então, dedicava-se a técnica e priorizava a auto defesa.
Maverick, por sua vez, era um adversário formidável, um guerreiro experiente e talentoso, que não deixava passar nenhum erro de Kimiko. Ele a pressionava ao máximo, exigindo que ela desse o seu melhor em cada luta. Kimiko sabia que teria que se esforçar muito para conseguir derrotá-lo.
Naquela tarde, os dois se enfrentaram mais uma vez, no campo de treinamento ao ar livre. Mas não sabiam que seria a última vez.