HISTORIA
Eles nunca o contaram, mas Jean conseguia imaginar o motivo.
E, até hoje, quando se pergunta, sempre chega à mesma conclusão, pois consegue sentir a resposta também nos seus ossos: foi tudo por causa do sangue de tubarão.
A forma como seus pais resolveram ser carpinteiros, então cientistas. O motivo pelo qual resolveram sair da ilha dos tritões e se enfiarem em um lugar tão tempestuoso quanto Huracán Archipelago. E então transformá-lo. E também a razão de eles não terem abandonado o lugar quando deveriam.
Para o bem ou para o mal, o sangue de tubarão nunca deixou os pais de Jean ficarem parados. Sempre audaciosos demais, buscando o que não deveriam, assim como Jean.
As primeiras lembranças do Tritão Tubarão-Tigre já eram no Archipelago de Huracán, de morar em uma cabana em uma costa próxima ao mar. Próxima demais. Em uma floresta isolada demais para pedir ajuda.
O arquipélago era conhecido por ter sido uma ilha só, milhares de anos antes. Entretanto, graças a uma intensa atividade vulcânica, a ilha se partiu em três, se separando. O espaço deixado entre as ilhas sempre fazia com que as correntezas marítimas formasssem redemoinhos, separando as três.
A grande questão é que, como se tratava de uma ilha que foi dividida, diversos suprimentos que eram necessários em uma se encontravam na próxima, logo ao lado.
Por isso, apenas alguns navegadores mais hábeis conseguiam fazer o transporte por entre os redemoinhos, se tornando os heróis das ilhas. Entretanto, alguns poucos nunca seriam capazes de suprir a demanda das três ilhas. E, na infância de Jean, era isto que fazia o sangue de tubarão dos seus pais não parar.
Os dois carpinteiros cientistas estavam ao máximo em busca de descobrir a melhor forma de construir um barco capaz de atravessar os redemoinhos de maneira a desconcentrar o trabalho dos navegadores. Passavam horas, todos os dias, após pescarem no mar e comerem frutas na floresta, fazendo divesos desenhos e projetos de navio. Derrubando árvores e construindo botes, testando hipóteses científicas para quando finalmente conseguissem fazer barcos maiores.
Um dia, a mãe de Jean teve uma percepção: o grande problema dos navios eram ser movidos pelo vento, em um cenário em que era impossível recebê-lo em segurança. Por isso, os dois começaram a construir navios movidos a energia eólica, levando cataventos enormes sobre eles, que acumulavam energia em um motor que os permitia se mexer em linha reta.
Jean foi levado no primeiro teste. Provavelmente nunca se esquecerá de como, no momento em que caiu no redemoinho, foi capaz de girar junto a ele e então escapar pela tangente em linha reta, sem serem engolidos. Seus pais estavam tão certos de que a experiência funcionaria que foram capazes de levar o próprio filho.
Então, começaram a comercializar os barcos. É claro que tritões não poderiam ir à frente das negociações, em uma ilha majoritariamente humana. Por isso, eles vendiam para alguns humanos que eram pobres demais para se importar com lidar com tritões, que, por sua vez, revendiam os navios.
Os testes foram capazes de aproximar as três ilhas e trazer bem-estar para todos. O nível de pobreza da ilha diminuía e o comércio se tornava cada vez mais farto. A cabana isolada crescia, progressivamente se tornando um casarão confortável, com espaço para a construção de cada vez mais navios.
O grande problema é que estar ali era bastante solitário para Jean. Ele só tinha seus pais, que sabiam muito mais do que ele poderia naquela idade e que muitas vezes sequer o explicavam, já que já se entendiam muito bem entre si.
Na maior parte do dia, brincava no mar com peixes e explorava as carcaças de navios que haviam sido afundados pelos redemoinhos.
Queria ter amigos, mas as vezes nem mesmo tinha atenção dos pais. Era extremamente solitário e não ligava pra isso na maior parte do tempo. Não haviam outros tritões na ilha e seus pais o haviam expressamente proibido de ser amigo das crianças humanas de sua idade.
Em uma dada semana, os humanos não apareceram mais para comprar os navios que os seus pais haviam fabricado. Aos poucos, o dinheiro que usavam para manter a casa começou a diminuir, até que estavam novamente tendo de pescar peixes e colher frutas na floresta.
Os negócios da família iam mal e todos estavam em situação de extrema pobreza. Revoltado, Jean se lançou ao mar e foi entreouvir a conversa das pessoas no porto. Um humano havia se apresentado como o inventor dos navios-hélice e o estava comercializando, roubando a ideia do casal Melena-Grotius.
Ao contar para os seus pais, eles apenas responderam que não havia o que fazer, com um tom tão impotente quanto decepcionado.
Jean se lançou novamente ao mar, mas, dessa vez, para berrar aos quatro ventos o fato de que os verdadeiros criadores do navio-hélice eram seus pais. Levava consigo o bote-protótipo para a frente do corpo, mostrando como a madeira era bem mais desgastada e antiga. Em resposta a isso, todos gargalharam do garoto. ''Nenhum tritão seria capaz disso'', ''Então tritões moravam na ilha? Que horror!'' e diversas ofensas perversas. Em pouco tempo, estavam arremessando tomates nele.
Meses de fome e falta de perspectiva depois, os humanos finalmente chegaram à casa deles. Aparentemente, um dos navios copiados havia causado um enorme acidente, levando a vida de diversas pessoas de Huracón.
''Nós podemos ajudar!'' respondeu o pai de Jean. Certamente as cópias, feitas sem ideia da estrutura por trás delas, não seriam capazes de ter o cuidado necessário, que só poderia ser atingido através de cálculos, para dar segurança à construção. Apenas o criador original poderia pensar naquilo.
Mas os humanos começaram a acender tochas e usar armas. ''Parem de copiar os navios! Vocês nos venderam réplicas falsas!'' berravam. Os três fugiram para o mar, assistindo o casarão pegar fogo.
Jean não conseguia parar de se culpar por ter revelado que haviam tritões na ilha, mas, principalmente, não conseguia perdoar os humanos por não acreditar que seus pais eram os criadores da invenção que havia revolucionado a ilha. Ficava cada vez mais tempo sozinho, explorando as carcaças.
Um dia, encontrou um enorme tesouro de um navio pirata afundado. Mas o que mais lhe chamava a atenção não era o ouro, mas o diário do capitão.
Com o ouro foi capaz de salvar sua família, que comprara um navio para viver longe dos humanos e já poderia pensar em novas invenções com a segurança. Com o diário, que lhe sobrou, conheceu profundamente a ideologia dos piratas. A autoestima para se contrapor ao mundo, a identidade dita vilanesca mas que na verdade era carregada de liberdade. O ideário de usar a recompensa posta sobre sua cabeça como uma coisa boa, em favor próprio. Naquele instante, havia decidido se tornar um pirata.
Quanto aos seus pais, eles já estavam pensando em outra maneira de revolucionar Hurácon. Eles insitiam na ideia de que ''não importava o navegador, mas o navio.'' Naquele momento, Jean entendia que a ideologia deles era muito mais ampla. O que eles realmente queriam dizer é que não importava o que alguns humanos fizessem, mas mudar o sistema infeliz em que eles estavam inseridos.
O que mais irritava Jean em tudo aquilo é que eles, novamente, não se importavam com colher os créditos.
Revoltado, saiu em direção ao mar sozinho. Se encontrou com tripulações de tritões, vendo elas sendo dizimadas pela Marinha uma por uma. Fugiu por diversas vezes, aprendeu o verdadeiro significado de ser um pirata, desenvolveu o seu karatê tritão e sua esgrima.
Agora, ele queria ser o que quisesse, até mesmo se permitindo ser chamado de vilão para isso, se fosse o caso. O que importava era criar um lugar onde os tritões não se sentissem mais sozinhos.
E, principalmente, colher os créditos.
Seu sangue de tubarão não o permitiria parar antes disso.